O bar em Templeton Hill era um antro de neon barato e paredes revestidas de aço tijolos vermelhos repletos de mofo e fuligem, cheirando a álcool velho e promessas vazias. Pierre e Mac estavam sentados no balcão, assistindo ao noticiário na HoloTV acima das garrafas alinhadas, cada um com uma garrafa de cerveja Patagoniana nas mãos, um simulacro de Pilsen com gosto de urina.
Um jingle animado tocava na tela.
"Mike Herrera retorna com seu novo single, 'Dreams of Neon Fire'! Já disponível em todas as plataformas sensoriais!"
A tela mudou para um anúncio vibrante. Uma voz feminina, carregada de sensualidade artificial, sussurrou:
"Liberte seus desejos com os novos nanorrobôs afrodisíacos da ValexSynthesis. Compatíveis com o seu amigão!"
Mac bufou e tomou um gole de sua cerveja.
— Essa cidade tá indo pro inferno.
Pierre sorriu de canto.
— Se tivesse ido, já teria chegado.
A programação voltou ao jornal. O âncora, um homem de terno cinza impecável, encarava a câmera com um sorriso polido.
— A recém-fundada ValexSynthesis comemora hoje o sucesso absoluto do programa Cleansing. De acordo com os dados mais recentes, 89% dos modelos Replorg PlorgTech 2.0, considerados defeituosos, foram ou eliminados, ou devidamente recolhidos e substituídos pelo modelo atualizado, PlorgTech 2.1. Apenas 15% dos PlorgTech 2.0 foram eliminados. O porta-voz da empresa, Nicholas Rutger, declarou que a atualização garante maior estabilidade e eficiência dos replorgues em setores industriais e domésticos. Vamos agora à entrevista com a chefe do conselhod e acionistas Jordan Evans, que nos fala direto da sede da ValexSynthesis em Valex City.
A câmera cortou para uma belíssima mulher ruiva com um sorriso autossuficiente.
— Estamos comprometidos em garantir que todos os nossos produtos atendam aos mais altos padrões de qualidade. O Cleansing não apenas aprimora a experiência dos consumidores, mas também assegura que as unidades defeituosas sejam devidamente tratadas e substituídas sem custos adicionais.
A notícia seguiu, mas Pierre já tinha largado o copo na mesa.
— Cleansing, Mac. Eles chamam isso de Cleansing. Dizem que havia pouco mais 1.5 milhão de PlorgTech 2.0, se quinze porcento foram eliminados nas ruas, isso significa mais de 200 mil desses pobres diabos foram assassinados pela General Security... Isso devia se chamar genocídio.
Mac suspirou e girou a garrafa de cerveja na mão.
— Não exagera, Pierre... Esses livros de mulherzinha que você anda lendo estão bagunçando teus miolos... São autômatos, Pierre. Robôs. Se um processador dá defeito, você troca. É assim que funciona.
— Eles são humanos.
— Eles são máquinas.
Nesse momento, uma mulher entrou no bar.
Seus cabelos eram naturalmente brancos, um detalhe que chamava atenção demais. Por isso, usava um boné de beisebol e uma bandana por baixo. Mas o real problema eram seus olhos: as íris vermelhas eram uma assinatura dos replorgues, então os óculos escuros eram obrigatórios acima de lentes de contato castanhas. Possuía, ainda, pesada maquiagem vermelha nas bochechas, como mandava a ascendente moda ClownQuinn.
Ela andou com um equilíbrio estudado até o balcão, sentou-se ao lado dos dois homens e fez sinal para o barman.
— Tequila. Dose dupla.
O barman, Dan, hesitou por um segundo antes de servir a bebida. Ele era um homem magro, de olhar sempre cansado, e preferia não se envolver em discussões.
Ela escutava a discussão entre Pierre e Mac.
— A obra do professor Brooks é essencial pra entender... — Pierre protestava.
— E por que diabos você fica lendo essas quinquilharias... Não basta a Bíblia? — protestou Mac, sempre muito mais conservador.
— Você ficaria surpreso com quantas coisas horríveis já foram feitas em nome da Bíblia e de Deus... — Pierre replicou.
— Balela...
Ela conhecia essa conversa. Já a ouvira antes, em outras bocas, em outros tons, mas o conteúdo era o mesmo. Mac a fazia ferver por dentro, mas ela se forçou a manter a calma. Sequer podia reagir sem se expor.
— Pierre — disse Mac, rindo. — Você leva essa história longe demais. Você acha mesmo que essas coisas sentem? Que pensam?
Pierre se inclinou para frente.
— Você frequenta O’Higgins, Mac. Casas noturnas. Casas de prostituição. Você tem uma favorita lá, não tem? Emilia era o nome daquela PlorgTech 1.0 do tipo P. Me diz, Mac, ela não é diferente das outras? Você não sente alguma coisa por ela? Afinal, você mesmo casado, sempre está lá, e faz questão sempre dela.
O barman, Dan, soltou uma risada seca, enxugando um copo. A mulher-replorgue virou a cabeça levemente na direção deles, curiosa.
Mac hesitou. Bateu a ponta dos dedos na madeira do balcão.
— Não fale como se você também não frequentasse... — Mac ficou corado com a denúncia de sua infidelidade em tons tão claros.
— É... É verdade, mas eu não sou casado... — Pierre riu debochadamente, enquanto Mac tentava recuperar a dignidade, se é que havia alguma.
— Ok. Talvez eu esteja exagerando. Não são só máquinas. Mas também não são humanos.
— Então, se não são máquinas nem humanos — disse Pierre, aproximando-se —, eles ocupam uma posição intermediária entre os dois, certo?
Mac franziu a testa.
— Sim, suponho que sim.
— Então me diz, Mac. Eu nem preciso recorrer ao "livro de mulherzinha" do professor Brooks e ao conceito de Darwinorrobótica, para isso que vou lhe eprguntar... Quais direitos humanos deveriam ser concedidos aos replorgues, e quais não deveriam?
Silêncio.
Mac abriu a boca, mas não saiu nada.
Porque a verdade é que não havia diferença real entre humanos e replorgues em Valex City. Nenhum deles tinha direitos de verdade. Na melhor das hipóteses, humanos gozavam de uma maior tolerância enquanto mercado consumidor... Mas apenas isso, tolerância.
A mulher sorriu de canto, um brilho amargo de satisfação.
Mac soltou um suspiro, pegou a carteira e deixou algumas notas na mesa.
— Você venceu essa, Pierre. Vejo você depois de expediente amanhã. Tenho uma família pra cuidar.
Ele se foi, deixando Pierre sozinho com sua longneck.
A mulher se virou para ele e, pela primeira vez, tirou os óculos escuros e as lentes.
— Eu pago a próxima.
Pierre levantou as sobrancelhas, surpreso, mas sorriu.
— Nesse caso, tequila. Dose dupla.
O barman, que estava de costas, não reparou nos olhos da mulher... Ele estava tão habituado a discussões que muitas vezes resvalavam na agressão física, que o papo de Mac e Pierre caiu na desatenção pela trivialidade. Ele se limitou a servi-la.
— Pierre. — Se apresentou o homem negro de sotaque afrancesado.
— Yulia — Se apresentou a mulher.
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