terça-feira, 21 de janeiro de 2025

[CONTO] The Replorg: Amor e Ficção

Valex City, 2055.

Valex City, 3 milhões de habitantes, mais de 100 homicídios por 100 mil habitantes, Gini de 0.72, IDH 0,770. Seria considerado um fracasso social em qualquer sentido antes da Terceira Guerra Mundial. Hoje é o lugar mais cobiçado e onde tudo acontece no mundo. Dizem que na Antiguidade fora a Guanghzou, na China, depois na Idade Média era Roma. Durante a aurora da modernidade fora Paris, e até a Segunda Guerra Mundial, Londres. Depois da Segunda Guerra Mundial, Nova Iorque. Aparentemente é preciso grandes guerras e crises para que um país ou cidade se torne o centro do mundo. Foi preciso chover balísticos intercontinentais no hemisfério norte pra que Valex se tornasse o farol da civilização... E que bela merda de farol. Era isso que o Doutor Neill Pável pensava sentado em sua sala de vidro no quadragésimo terceiro andar do edifício central da NetLife, prédio glamuroso em preto e dourado que ficava no limite entre o Centro e O’Higgins. A paisagem de Valex City se estendia diante dele, um mar de luzes neon vermelhas, azuis e douradas, além de hologramas da SonySoft e da Patagoniana em prédios monolíticos pretos e quase sem janelas na escuridão nevoenta da cidade, que mascaravam a realidade sufocante abaixo. Dali ele conseguia ver a construção bem no meio do centro financeiro, a construção do futuro prédio da nova aberração corporativa do mundo, a ValexSynthesis. Um prédio cilíndrico, monolítico, preto, de 400 andares, projetado para ter um quilômetro de altura e ser o maior prédio de Valex City.

O cientista de 45 anos destoava do caricato sujeito de jaleco branco e óculos. Aliás, na NetLife, nenhum cientista se vestia assim, pareciam juntos, na verdade, uma conferência de advogados com ternos feito de um polímero termo-isolante que parecia tecido comum, como linho ou seda. Pável  havia passado os últimos meses trancado em sua pesquisa, dedicando-se integralmente a ela. Não que ele tivesse coisa muito melhor pra fazer. O projeto "Viva no Seu Mundo" era a menina dos olhos da corporação, mas para Pável, representava algo mais: a fronteira final da conquista da humanidade, a construção de mundos ideais. Ele tinha tudo em termos materiais, sua pesquisa era bem financiada, sua equipe muito capacitada, o Nobel era questão de tempo, todos diziam. Mas o vazio que o acompanhava desde a morte de sua esposa 17 anos antes, o tornava insensível ao luxo que o cercava. Vivia a base de ansiolíticos, antidepressivos ou simplesmente bebida nos dias em que nada dava jeito. Sua única expectativa é que, chegado no fim de sua vida, poderia requerer a NetLife que o colocasse num desses universos fictícios construídos pela tecnologia do worldbuilding, a mesma que quase arruinou o mundo em 2030, e que as corporações faziam de tudo para ocultar do conhecimento das massas, mas voltando ao ponto, ele esperava que o permitissem viver num mundo feliz com sua esposa, ou pelo menos uma versão dela conforme ele se lembrava.


Do outro lado da cidade, no Distrito Luminar, Julya Karpova terminava mais um turno exaustivo no bar noturno em que trabalhava, o TaoKao Pub. Era um  prostíbulo, na verdade. Embora Julya sempre tentasse evitar os programas, ela às vezes, por pressão do cafetão das Beetches que atuava ali, Chal Hopman, acabava tendo que atender sexualmente alguns clientes. Nesses dias, ela se sentia horrível. Hopman era um homem horrível, mas ainda era menos ruim que Kenneth, um cafetão reprogramador de replorgues que acabou assassinado por soldados BioMechaCorpers ainda no início do Street Cleansing, entre fevereiro e março do ano anterior, e de quem ela já havia apanhado um bocado. Depois viria o triste capítulo conhecido como “Guerras de Kazuma”, onde a Wakizashi foi posta pra correr e virtualmente exterminada de Valex City, mas ao custo de muitas de suas colegas orientais acabarem sendo vitimadas nos conflitos de gangue. Duas delas estavam  no metrô de Kazuma quando durante a investida final do recém-formado Grupo dos Três, incendiaram o metrô. Uma leão de chácara do TaoKao Pub que era membro das Beetches acabou assassinada pelos ninjas da Wakizashi. Ela caminhava passando por uma loja de elite perto do Valex Mall, e viu nos TVPads anunciados pela vitrina, mais uma saraivada de nomes no noticiário, enquanto caminhava para a estação de metrô. Era uma profusão de propagandas de produtos ou de notícias sobre acontecimentos importantes na VXC News.

"Mike Herrera lança seu novo single: Stars fading! Agora, vamos aos anúncios! Problemas de ereção? Compre a Rule Condom, camisinha com estimulante nervoso que vai deixar seu poste eriçado!

Na concorrência, a VCN, a coisa não era muito diferente: 

"Na zona industrial duas pessoas foram assassinadas, provavelmente um esquema de gangues envolvendo a DogFart... Agora, vamos a uma notícia do agrado do público feminino! A biografia não autorizada de A.J. Brooks e sua esposa, a replorgue Carol Brooks bate recordes de venda, e a Valex Editorial já encomendou uma série ficcional ao canal de streaming Netprime! para contar a fuga insana dos dois para o Uruguai"

Mais lixo... Julya não via mais graça em nada. Não acreditava em contos de fadas. 

"Um professor da Teller Academy e uma replorgue de tipo P? Ha! Belo caô." - Ela pensava. Não que ela fosse negacionista do que ocorreu no Incidente Brooks, é que no fundo, ela não acreditava nos homens mais. Ela os conhecia muito bem para saber que de uma garota como ela, eles só queriam uma coisa, e era "disgusting". Naquele dia em específico suas mãos doíam, e suas coxas tinham hematomas do atrito constante com o poste do pole dance. E o cansaço pesava em seus ombros. Com apenas 19 anos, ela já era mãe de Yekaterina, uma garotinha surda de quatro anos, cuja existência era sua única motivação. Apesar de trabalhar em dois empregos e ganhar acima da média, o aluguel, os custos com alimentação e o tratamento da filha tornavam impossível uma vida confortável. Sua franja branca destacava-se entre os cabelos pretos, uma marca, ao lado dos piercings, de sua rebeldia em um mundo que insistia em esmagá-la. Julya suspirou, ajeitando sua blusa azul combinando com sua calça skinny glossy rosa, que além de delinear suas curvas, refletia a luz das árvores holográficas azuis do centro e o letreiro da TesyD.

A noite caiu sobre Valex City, tingindo o céu de tons negros. Pável, cansado após um dia de reuniões com executivos da NetLife, desceu até o estacionamento. Seu veículo voador, um VTOL Puma-X modelo Clouds, deveria estar pronto para levá-lo para casa, mas um problema nos propulsores o impediu de decolar. Irritado, ele entrou em contato com a seguradora e foi aconselhado a pegar o metrô, do centro, até o Distrito Luminar. Era algo que ele não fazia há anos, mas não havia escolha. No metrô quase vazio, Pável chamou atenção. O terno impecável e a maleta cara faziam dele um alvo fácil. Ele mal percebeu o jovem que o observava com olhos predatórios. Antes que pudesse reagir, o homem avançou, empunhando uma faca rudimentar. "Passa tudo, agora!", gritou o assaltante. Pável congelou, incapaz de pensar.

Julya, sentada no outro canto do metrô esperava o trem, eles pegariam  trens diferentes, ela da estação central até O’Higgins. Ele, provavelmente do centro até algum prédio luxuoso na região do Valex Park de frente pro distrito luminar. Ela observou a cena. Diferente de Pável, criado com trejeitos classudos da pequena burguesia, Julya nasceu na região mais precária de O’Higgins, debaixo do jugo da DogFart. Ela não tinha e nem nunca teve modos, era do tipo “barraqueira”, e se a vida a havia ensinado algo, era que ela não gostava de injustiça, mesmo que fosse contra um burguezinho.  Para ela, não havia tempo para hesitação. O instinto falou mais alto. Levantando-se, ela correu na direção do assaltante, usando as habilidades atléticas adquiridas no clube para desarmá-lo com um movimento ágil. Porém, o homem reagiu, desferindo um golpe que a derrubou no chão, tirando um sangramento notável de seus lábios. Pável, tomado por uma coragem inesperada, avançou e acertou o assaltante com sua maleta. Juntos, os dois colocaram o bandido para correr. Por um segundo ele se sentiu como A.J. Brooks defendendo sua replorgue, um conto de fadas moderno que marcou toda a confusão do Cleansing iniciado um ano antes. Pável não tinha ideia, mas essa não seria a última vez que a mera ideia de A.J. Brooks cruzaria seu caminho.

— Você está bem? - perguntou Pável, estendendo a mão para ajudá-la a se levantar.

Julya assentiu, levando as mãos aos lábios, e retirando-as sujas de sangue. Pável deu-a um lenço que estava em seu bolso, e ela passou a viagem com dor e sustentando o lenço na boca, mesmo depois do sangramento cessar. Apesar disso, ela engoliu o choque e a expressão de dor. - Estou bem. E você?. - Ela tentou transbordar naturalidade, como quem fazia aquilo sempre. Embora por dentro ela estivesse pensando em quão insana tinha sido por tomar partido numa briga de um completo desconhecido, sendo uma mulher, e aparentemente, defendendo um corporativo. Pável agradeceu, ainda ofegante, e insistiu em acompanhá-la até em casa. Durante o trajeto, ele falou uma ou duas coisas, a maior parte do tempo segui-se um monólogo, um desabafo de uma jovem cansada da vida, de ter dois empregos, um dos quais ela mesma julgava degradante. E descobriu partes da vida de Julya que o deixaram desconcertado. A pequena Yekaterina, o trabalho exaustivo, a perda do namorado Hal Perkins, um jovem gângster que era pai de sua filha, morto em circunstâncias violentas após se envolver com a DogFart... A realidade dela contrastava brutalmente com o conforto vazio de sua existência.

Ao chegar ao prédio decadente onde Julya morava, um cortiço com no máximo 4 andares, mas repleto de pequenas quitienetes, com paredes tão finas que se podia ouvir até o respirar dos vizinho, Pável sentiu uma pontada de culpa. Ele sabia que, em outras circunstâncias, jamais teria notado alguém como ela. Sua riqueza e status sempre o protegeram da crueza do mundo. E por ter ficado grato, mas sobretudo por tê-la achado bonita, decidiu acompanhá-la. Ele estava cansado da solidão que acompanhava a viuvez. Mas, agora, ele não conseguia ignorar. A pequena Yekaterina o recebeu com um sorriso tímido, seus olhos brilhando de curiosidade. Naquele momento, algo dentro de Pável mudou. Julya apresentou a filha de quem falou com um misto de cansaço e amor durante toda a viagem. A pequena era parecida com a mãe, tinha lábios mais finos. “Uma herança genética do pai, talvez”, pensou Pável. Ela não falava, uma consequência justamente de não ouvir. Julya porém falava a LLS, a língua local de sinais, coma  filha, a mesma era ensinada nas aulas da ABC Solutions, embora fossem caras, e com o modesto salário de Julya, Pável entendia o sofrimento e o cansaço, era quase um milagre sobrar algo, se é que sobrava.

Nos dias seguintes ao encontro, Neill Pável não conseguiu tirar Julya Karpova de sua mente. A simplicidade e a força dela, tão diferentes de tudo o que ele conhecia, despertaram algo profundo. Ele começou a aparecer no fim do expediente na lanchonete em O'Higgins, aguardando-a em seu restaurado Puma-X, ele a dava uma carona até o distrito luminar. E após o fim do expediente no TaoKao Pub, ele a levava de volta. Por vezes, poderia sair mais cedo, mas fazia hora extra apenas pensando em poder ver de novo os olhos verdes e o sorriso perfurado por uma argola nos lábios, de Julya Karpova. Pável estava se apaixonando, algo que não acreditava que fosse mais possível. Ele estava ciente disso. No entanto, ele negava para si mesmo. “É só uma garota gentil... Sem muitos modos... mas gentil e que precisa de ajuda”... Ás vezes justificava-se dizendo a si mesmo: “Sou um homem na meia idade viúvo e sem nada de interessante para fazer a noite... Por que não?”.

Inicialmente, Julya hesitou. Por que um homem tão bem-sucedido e distante de sua realidade estava tão interessado nela? Mas, pouco a pouco, a gentileza de Pável, sua educação, cavalheirismo e bons modos, algo tão diferente do que estava acostumada com os “moleques” de O’Higgins, começou a quebrar suas barreiras. Ele nunca exigia nada em troca, apenas a companhia dela. Ele a ouvia falar de seu cansaço, de suas lutas por horas, e parecia ao deixá-la na Dime Street de O’Higgins depois da meia-noite, tão ou  mais revigorado do que no momento em que ela entrava no VTOL. Quase como se o simples som de sua voz fosse um remédio poderoso contra o cansaço. Pável também se aproximou de Yekaterina, encantado pela energia e curiosidade da criança, mesmo sem poder ouvir o mundo ao seu redor. Ele comprou pequenos dispositivos de tradução visual para ajudar Julya a se comunicar melhor com a filha, além de brinquedos educativos. Julya, dividida entre a desconfiança e a gratidão, começou a permitir que Pável entrasse em suas vidas. E paulatinamente começou a ver no homem de cabelos grisalhos, mas com pele ainda bastante jovial, quase como se aparentasse não mais que trinta (maravilhas da medicina restaurativa da década de 50 daquele século), algo de mais cálido, talvez mais que um amigo, talvez... Só talvez, ela estivesse gostando dele.

— Neill, você sempre foi tão gentil comigo e com Yekaterina. Por que faz isso? — perguntou Julya em uma noite em que estavam no carro, estacionados em frente à casa dela, um edifício de quatro andares e comprido na horizontal repleto de caixas de ar condicionado a mostra.

— Talvez porque você me lembre o que é ser humano. Ou talvez... talvez porque eu gosto de você. — Ele desviou o olhar para o skyline da cidade ao fundom onde prédios enormes exibiam nas arestas leds que oscilavam do azul para o vermelho quebrando a escuridão da noite num chiaroscuro, ele deu uma olhadela rápida para ela, parecendo envergonhado.

“Que ridículo”, ele pensou, “45 anos e me comporto como um adolescente de 17”.

Julya sorriu, um sorriso pequeno e meigo. — Você é diferente dos outros. Eu não sei o que dizer... mas obrigada.

Outro diálogo marcante aconteceu em uma visita ao Valex Park, num dos raros dias de sol, onde Pável insistiu em levar Julya e Yekaterina para um dia de folga.

— Faz tanto tempo que não respiro ar fresco assim — disse Julya, enquanto Yekaterina corria pelo gramado atrás de dronebees polinizadoras da Oxvard University .

— E faz tanto tempo que não me sinto tão vivo. Vocês trouxeram algo que eu pensava ter perdido para sempre. — Pável olhou para ela com uma intensidade que fez Julya corar.

— Talvez você esteja exagerando. — Ela tentou minimizar, mas não conseguiu conter um leve sorriso.

— Não, Julya. Por muito tempo, meu mundo foi cinza. E vocês... vocês trouxeram cor para ele. — Ele tocou de leve a mão dela, um gesto que dizia mais do que palavras poderiam.

No entanto, a vida de Neill Pável seguia dividida entre os dias estressantes, ainda que fascinantes de trabalho científico, de um lado. E os momentos tranquilizadores e agradáveis com Julya e Yekaterina. Neill se ressentia do fato de não ter podido ter filhos. Sua esposa morrera antes mesmo de conseguir engravidar. Eles queriam postergar a gravidez, pensavam em trabalhar, formar patrimônio e então, quando chegassem aos 30, talvez terem o primeiro bebê. Quisera o destino que sua querida Clara morresse com 28 anos. Agora sentia-se quase como que realizando o seu sonho de ter uma família. Enquanto isso, no outro lado da sua vida, a de cientista a serviço da NetLife, o progresso do projeto "Viva no Seu Mundo" atingia um marco crucial. Pável e sua equipe, finalmente desenvolveu o módulo que tornava o cérebro físico dispensável. A aparelhagem em vigor exigia a separação do corpo e do cérebro, o primeiro era descartado por ser inútil e o segundo era imerso numa solução neuroconservante, enquanto fios e microprocessadores eram conectados a ele. Tudo o que a pessoa vivia no mundo fictício, geralmente cujas bases eram desenhadas e escritas anteriormente por algum escritor famoso, pago a peso de ouro, era transcrito pelas máquinas e pelos poderosos HoloPads, na forma de e-books. Com isso, os clientes mais ricos poderiam viver eternamente em mundos fictícios pairando em uma n-dimensão de espaço e tempo separada daquele mundo de caos, sem qualquer ligação com a realidade. Contudo, a convivência com Julya e Yekaterina transformou sua perspectiva. Ele começou a enxergar o programa não como uma conquista científica, mas como uma abominação. E o simples fato de uma mulher doce como Julya e sua adorável filha viverem um inferno cotidiano e bilionários não aceitarem a morte e terem vidas paradisíacas na terra e a depois dela, não parecia certo.

Pável queria entender como. Por que. Ele então se entregou à leitura de textos sobre desigualdade social e capitalismo tardio, algo que evitara por toda a vida, não por medo, mas por nunca ter tido curiosidade ou ver importância. Ele se debruçou sobre a "História Social do Mundo (2020-2050)" de A. J. Brooks, o agora lendário professor que salvou uma replorgue pela qual se apaixonou e que se tornou um modelo para a BioSynthesis. Os trabalhos mais recente de Brooks, no Uruguai, sobre o que ele chamou de “Darwinorrobótica” estavam sendo publicados por editoras subsidiárias da ValexSynthesis. Uma forma curiosa de fomentar o abolicionismo biorrobótico enquanto usava o lucro dos livros para financiar a BioSynthesis, subsidiária da ValexSynthesis. Ele leu ainda outros materiais da Teller Academy sobre humanidades. Pela primeira vez, ele entendeu as raízes do sofrimento que Julya enfrentava diariamente. O sistema corporativo ao qual ele dedicara sua vida era o mesmo que esmagava bilhões para sustentar o luxo de poucos.

As reuniões com os acionistas da NetLife começaram a se tornar insuportáveis. A indiferença deles às implicações éticas do projeto o enojava. Eles discutiam o lançamento como se fosse apenas mais um produto no mercado, ignorando completamente a miséria que perpetuavam. Pável sabia que precisava agir, mas como?

Em uma noite particularmente difícil, ele finalmente desabafou com Julya. Contou sobre o projeto, sobre o poder que tinha em suas mãos e como isso poderia beneficiar os ricos enquanto condenava o resto da humanidade. Para sua surpresa, Julya o ouviu com paciência. — Parece-me horrível. - Ela falou. — No entanto, não sei o que eu deveria te aconselhar. Eu mal consigo cuidar da minha filha.

— Não gostaria de viver num mundo perfeito como esses ricaços? - Ele perguntou enquanto guiava o VTOL debaixo de luzes vermelhas, azuis e douradas refletindo no vidro do Clouds repleto de gotículas de orvalho.

— Só se você estiver nele. - Julya riu revelando uma argola sobre os dentes, um piercing que Pável achava charmoso. - Ela falou como brincadeira. Mas para Pável aquilo era muito sério. Ele se imaginou vivendo numa versão alegre e colorida de Valex, onde eles brincavam num jardim com grama de verdade onde árvores reais e holográficas se revezavam. Julya, ele e a pequena Yekaterina. Ele não deixou transparecer, mas aquilo o mudou. Naquela noite, ele pernoitou na casa de Julya, pela primeira vez tiveram sua intimidades, a pequena Yekaterina dormia tranquila num quartinho ao lado. Na manhã seguinte, Pável entregou a KriptoKey de seu apartamento de frente para o Valex Park para Julya. Ele queria que ela passasse a morar com ele. Ela, obviamente aceitou.

Os meses se passaram, a etapa de testes da nova tecnologia havia começado, várias cobaias estavam sendo testadas, e o programa estava perto de dar seu grande salto para a NetLife. Mas aquilo trazia cada vez mais descontentamento para Pável. Ele amava a ciência, e havia feito algo incrível com sua equipe: Michael Howard, Jehu Park-Woo, Archibald Reese e Estebán Martinuccio. Ele não se ressentia da ciência, da tecnologia, algo que ele seguia vendo como o futuro da humanidade. Ele se ressentia de que aquilo estivesse nas mãos de poucos. Que fosse usado para lucro e talvez para facilitar a dominação corporativa da ValexSynthesis e da própria NetLife.  Pável começou a importunar colegas com suas indagações, a expor suas ideias e insatisfações sobre isso, a recrutar aliados dentro da NetLife. Ele abordou colegas cientistas que compartilhavam suas dúvidas sobre o projeto e, gradualmente, formou um pequeno grupo de resistência. Inicialmente a NetLife não se importou. Ela estava muito confiante de seu domínio, e pouco importava as opiniões individuais dos cientistas, contanto que eles seguissem trabalhando e construindo seus produtos e serviços. Eles, porém, os cinco colegas de Pável, traçaram um plano para destruir a máquina e apagar todos os registros da pesquisa. Porém, Pável tinha um objetivo adicional: ele queria criar um mundo fictício onde pudesse proteger Julya e Yekaterina. Seria sua última criação, um refúgio longe da corrupção e crueldade do mundo real. Ele sabia que se se refugiassem num mundo ficcional que ele criava aos poucos nos últimos meses, com base no seu devaneio lúcido dentro do VTOL, eles estariam para sempre longe das garras da NetLife e de toda a escória do mundo corporativo. Bastava esconder bem o segredo nesse mundo ficcional. Ele começava a desenhar assim, mentalmente, um plano.

Os dias que antecederam a apresentação oficial da nova tecnologia ao conselho de acionistas foram tensos. Pável sabia que estava arriscando tudo, mas não podia mais ignorar sua consciência. Ele se dedicou a construir o mundo fictício perfeito para Julya e Yekaterina, programando cada detalhe com cuidado obsessivo. Era um lugar de paz, uma versão tão cheia de luzes de Valex quanto a atual, mas sem corporações, sem violência urbana, um lugar alegre onde o mundo deu certo, onde nada poderia machucar a pequena família que ele tanto desejava proteger. Sem avisar Julya e Yekaterina, que agora viviam vendo o sol nascer por sobre o iluminado e colorido Valex Park, vendo o mar ao longe, na cobertura do edifício Sentrion, ele colocou o apartamento a venda num sistema Blockchain do KriptBank, a venda seria feita por uma IA fortíssima do banco, e automaticamente o NFT de propriedade seria passado para o novo comprador. A diferença, é que o valor ao invés de cair na conta dele, cairia na conta virtual de Yekaterina, conta que só Julya poderia movimentar. Isso era uma garantia, caso tudo desse errado. Assim, elas poderiam sair de Valex City para qualquer lugar, e poderiam recomeçar a vida com o espólio da venda da cobertura no valor de 450.000 AZ$.

No dia da apresentação, tudo parecia seguir como planejado. Pável e seus aliados se prepararam para destruir o equipamento logo após o conselho dar sua aprovação. No entanto, um dos cientistas, o argentino Martinuccio, temendo perder o emprego, traiu o grupo. Ele delatou o plano aos executivos da NetLife, que rapidamente mobilizaram uma força de segurança para conter a rebelião.

Os laboratórios se tornaram um campo de batalha. Os cientistas leais a Pável conseguiram bloquear temporariamente as entradas dos laboratórios com protocolos de hacking provisórios, gerados de última hora nos holopads, devia ser o suficiente para conseguir algum tempo, isolando os laboratórios das tropas NetLifers, compostos por replorgues PlorgTech 2.0-M. Se eles entrassem, eles não teriam a menor chance, seriam rasgados como papel ou perfurados como queijo suiço. Enquanto isso, Pável ativava o equipamento obsoleto para transferir os dados da pesquisa para o mundo fictício. Ele sabia que teria pouco tempo antes que fosse interrompido, mas estava determinado a concluir sua missão. Ele temia a traição, por isso ele fez questão de destruir o novo protótipo pessoalmente, e de apagar com uma IA poderosa todos os registros do projeto, exceto aquele que levaria consigo em sua mente. No texto escrito por ele, ele entraria na GoodValex portando um totem, uma caixa de madeira que representaria toda a pesquisa, e com base no que ele sabia, automaticamente os Neuroespelhos e os Estimuladores quânticos trabalhariam junto com a IA para garantir que isso seria materializado no mundo fictício.

A estratégia era simples. No equipamento obsoleto, havia uma latência de 15 minutos entre o que acontecia no mundo fictício e o que ocorria no mundo real. Se os equipamentos fossem desligados ou o cliente sofresse morte cerebral, sua mente ainda existiria durante 15 minutos lá dentro, antes de desaparecer também. A nova tecnologia era imune a isso. Não havia latência e a mente era totalmente separada do cérebro. Mas com ela destruída, o plano B de Pável era simples. Ele entrava em GoodValex, os colegas desligariam as máquinas por 12 minutos. Nesse meio tempo, ele esconderia a caixa contendo toda a pesquisa em  algum lugar do mundo fictício. Durante esses 12 minutos, a IA não transcreveria nada do que ele fez para o e-book, assim, impedindo que a NetLife tivesse acesso a localização dos dados da pesquisa, faltando 1 minuto para morrer, eles religariam a máquina, e ele voltaria. 3 minutos era pouco tempo para fugir, mas ele ainda teria uma chance de se safar por uma saída de emergência.

Antes de deitar na máquina, Pável entregou um NanoSD dentro de uma caixinha similar a de um anel, a Archibald Reese, sua assistente mais confiável e pediu que ela entregasse pessoalmente a Julya em sua casa. Ele permitiu que ela fugisse enquanto as primeiras camadas de defesa por hacking caiam perante as tropas NetLifers. Eles avançavam uma porta de segurança travada por vez. Havia 5 separando eles dos soldados, e 3 já haviam caído. Archie se despediu de Pável com um abraço, e ele saiu pela saída de emergência. Pável passeava inicialmente impressionado com o que havia criado. Ele olhava para os prédios enormes de GoodValex, brancos ao invés de pretos, os coqueiros reais na orla, o clima tropical e cálido, havia letreiros rosa e verde flutuando, mas não propagandas das infernais corps, e sim trechos de poemas e livros. Camões, Cervantes, Shakespeare, entre tantos outros. Ele gostaria de ter criado algo mais original, mas não tinha tempo, precisava recorrer a algo que conhecia bem.

Pável perdeu quase um minuto de seu curto tempo sentindo-se um demiurgo enquanto via as pessoas transitarem ali. Ele sabia que elas eram tão fictícias quanto o lugar, mas dado que o lugar fora criado em alguma n-dimensão de espaço e tempo alhures, seriam elas reais? Ou apenas NPCs, que era a terminologia usada no laboratório. Ele não tinha tempo para conhecê-las. Ainda maravilhado com quão real aquilo tudo soava e era percebido, ele enviou o sinal para os amigos de que era para desligar a máquina. A latência fez com que a mensagem chegasse no limiar do tolerável, e os cientistas desligaram o aparelho. Imediatamente o HoloPad parou de transcrever as ações de Pável no e-book. Nos próximos 12 minutos, ele estava por si só. Os NetLifers quebraram a última barreira de proteção ainda perto da conclusão do tempo. Os cientistas foram rendidos e Park-Woo, o operador não teve tempo de religar a máquina. Pável seguiu aguardando o momento em que seria retirado de lá após esconder a caixa no lugar mais importante para ele. Ele demorou um pouco a perceber que o que ele temia havia acontecido, mas já era tarde demais, sua percepção do mundo se borrou, e como alguém que caía num sono profundo, incapaz de lutar contra ele, sua mente se desfez.

Julya recebeu a encomenda inesperada ainda naquela tarde. Era Archibald Reese. Ele entregou o NanoSD contendo um vídeo gravado por Pável, explicando tudo: o projeto, a corrupção da NetLife e seu plano para proteger a pesquisa em um mundo fictício. Junto com o vídeo, havia 50.000 AZ$, dinheiro suficiente para Julya alugar uma casa confortável, ela deveria pegar o VTOL e seguir com destino ao Rio de Janeiro, no Brasil. "Use isso para cuidar de Yekaterina e de você mesma", dizia Pável na mensagem. "Eu queria poder fazer mais. Em breve a cobertura será vendida num leilão via blockchain e 450.000 AZ$ serão depositados na sua conta, você poderá recomeçar com esse dinheiro".

Julya assistiu ao vídeo com lágrimas nos olhos, compreendendo o sacrifício que Pável estava fazendo. Ela sabia que ele a amava e que estava disposto a arriscar tudo por ela e sua filha. Na NetLife, uma porta seprava os Netlifers de Pável. A equipe encheu o caminho de obstáculos. Uma conexão com o corpo vivo era mais trabalhosa, mas Pável já havia entrado em GoodValex, seu mundo fictício ideal para sua família dos sonhos. O que Julya não sabia era que nunca mais veria Pável. Assim, ela fez o combinado. Ainda no fim daquele dia ela já havia abandonado a cobertura, tomou o VTOL de Pável, ela mal sabia conduzir um carro comum, um VTOL parecia coisa de outro mundo, mas com algum sacrifício conseguiu decolar, demorou alguns segundos até ativar o reator ARC do carro, onde através de fissão nuclear controlada, os propulsores eram ativados, e após levantar vô de forma instável, conseguiu sair em linha reta e cruzar o oceano com destino ao que ela acreditava ser a direção da América do Sul abandonando a Ilha de Valex. Ela, Yekaterina e as memórias de Pável, era tudo o que sobrara. Sua filha ainda sem entender olhava maravilhada a luz do sol refletir a na superfície da água, enquanto voavam a 400 km/h a mais de um quilômetro de altura. Aos poucos sob o olhar carinhoso e melancólico de Julya, a pequena yekaterina pegou no sono.

Um bipe soou no watchphone da ex-dançarina, um valor de 450.000 AZ$ havia sido depositado pelo ID ZRT148787GG332587 na conta de sua filha no KriptBank. Era a cobertura leiloada. Ela tinha tudo para recomeçar, menos o homem que amava. Enquanto pensava nessas coisas, Julya, que não sabia dizer com certeza se estava indo para o lugar certo, seguia a marcação de terra mais próxima que a sofisticada aparelhagem do holo-GPS indicava e que ela não sabia manusear, ao ver uma porção de terra insular, supondo ser seu ponto de chegada, baixou vôo e aterrisou do modo mais atrapalhado possível. Ela perdeu o ponto de aterrisagem no holoponto, desceu com velocidade e energia cinética demais. O vundo do VTOL chocou-se contra o chão com força, despertando Yekaterina de seu sono tranquilo. O carro voador deslizou até sair do holoponto e cair no quintal de uma casa vitoriana com grande quintal, onde a Union Jack tremulava.

Ao sair do carro, viu um homem magrelo, mãos disformes assustado. Ele as olhava com olhos arregalados.

— Socorro! Minha filha é surda! Estamos presas! A porta emperrou! - Gritou Julya.

O rapaz largou o holopad, ainda assustado com o barulho, e correu até a porta, ele fez uma força grande demais para o biotipo dele, a ponto de ficar tonto. Então uma mulher linda, cabelos pintados em mechas azuis e ruivas chegou, vestindo uma blusa glossy nas cores da Union Jack.

— Senhorita Grey! - Gritou o rapaz — Ajuda aqui.

Com uma classe e destreza dignas de uma modelo de passarela ela se deslocou até o local, analisou o VTOL, modelo Clouds da Puma-X, e percebeu que o sistema eletrônico que governava a trava de segurança da porta havia quebrado com  o impacto. A mulher perguntou se elas tinham algum implante.

Julya percebeu o sotaque familiar. A mulher era de Valex, o sotaque muito característico da ilha, com a presença de “ee’s” inexistentes em palavras terminadas em consoantes e a substituição do “r” pelo “h” em palavras começadas em r era muito comum.   Julya assentiu que tinha um NanoSD com toda sua documentação. James olhou preocupado para Grey.

— Consegue passar pela greta pequena que se formou no trincado do vidro? - Perguntou o rapaz.

Meio receosa, Julya entregou. O rapaz se afastou, pegando seu holopad e entrando na casa. A mulher de cabelos coloridos, a tal Grey, então pareceu se concentrar em algo e um zumbido se ouviu. A porta imediatamente se destrancou.

— O que vocês fez? - Perguntou Julya aliviada. - É magia?

— Não. Pulso eletromagnético. Quando vim para cá, o mesmo aconteceu comigo na aterrissagem. Os modelos Clouds tem sistemas de travamento de porta bastante frágeis, no impacto os processadores param de funcionar, então você tem que usar um PEM neles, só assim eles se soltam. É como usar um desfibrilador num coração falhando.

— Obrigada! - Falou Julya, abraçando a filha, e recebendo de volta das mãos do rapaz o NanoSD.

— Não há de que! - Grey falou com um sorriso que não chegava aos olhos, com certa malícia até, Julya diria. - Venha! James, leve-a até a cozinha, sirva um chá às nossas hóspedes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Aviso Importante: Qualquer Semelhança é Meramente Coincidencial

 Todas as pessoas, nomes, empresas, eventos e locais mencionados neste contexto ou história são puramente fictícios. Qualquer semelhança com...